RECORDAR BONS MOMENTOS NOS FAZEM REFLETIR NÃO SÓ O QUE FOMOS E VIVEMOS, MAS TAMBÉM SE O QUE SOMOS REPRESENTA A REALIDADE DE NOSSAS ANGÚSTIAS. ALIMENTA NOSSAS ALMAS, REFRIGERA A ANSIEDADE PELO FUTURO E NOS FAZ AMAR, VALORIZANDO CADA MINUTO NO PRESENTE.

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domingo, 19 de setembro de 2010

Bairro do Brás e as lembranças do SENAI Roberto Simonsen

      Minhas primeiras andanças pela cidade de São Paulo se deram nos meados da década de 90 entre os bairros da Cohab 1 e o Brás.
      Primeiro compromisso com o futuro, a felicidade de saber que em breve estaria com uma profissão, a sensação de que algo promissor me aguardava, sensação boa, mente de jovem despreocupado, fase da vida de um paulistano que ainda consegue deitar e dormir. Compromisso que me fazia acordar cedo, não podia perder o Largo da Concórdia que saía pontualmente às cinco e vinte da manhã, aff...! É impossível não se lembrar dos detalhes das manhãs de inverno; saía de casa com duas calças, duas meias, vários agasalhos - coisa de paulistano da periferia, as roupas que tinha não esquentavam muito.
      O trajeto era de uma hora e meia até o Brás. Gostava de sentar no último banco e, como descia no ponto final, todo dia observava as mesmas pessoas entrarem e saírem durante um trajeto que cruzava os bairros de Vila Nhocuné, Vila Matilde, Penha, Vila Carrão, Tatuapé e Belém. O mesmo motorista, o mesmo cobrador, mas, mesmo assim, eram raros os cumprimentos de "bom dia!"; cisma de paulistano, sempre desconfiado na metrópole. Lembro me de uma garota muito bonita que por meses sentava-se ao meu lado, dia a após dia ensaiava o que dizer a ela, quase vencendo minha timidez... Certo dia, ela não apareceu mais, que frustração. Uma história bem engraçada: Uma vez encontrei no banco do ônibus, um batom esquecido por alguém, destes bem vermelhos. Coisa de moleque, resolvi rabiscar o assento da frente, pixações à parte, quase não me contive quando no dia seguinte, meu irmão chegou em casa com a calça toda lambuzada, dizendo: "Algum filho da p...! que não tinha o que fazer, Ah... se eu pego!"
      Como era bom observar pela janela! Ver o movimento das pessoas nas manhãs, crianças indo à escola, trabalhadores ao batente, e claro, os vovôs e vovós indo sei lá pra onde, tão cedo, sempre me perguntei... Ficava lendo os letreiros das lojas até sentir dor de cabeça, sabia todas na ponta da lingua.
      O cheiro das manhãs era bem peculiar... Dentro do ônibus não posso dizer que era tão agradável assim, alí cheirava de tudo um pouco, não preciso relatar tais odores por aqui, quem anda de coletivo sabe. Lembro-me quando o ônibus parava em frente a uma padaria na Celso Garcia, podia ver as pessoas tomando seus cafés, por aqui chamamos de "pingados", colocava o rosto próximo a janela, sentia seu aroma bem forte, misturado aos cheiros da manhã e... muita fumaça de ônibus... Cheiro de São Paulo!
      Chegando ao Largo da Concórdia, ia a pé atravessando o viaduto do Gasômetro, marmita na bolsa, garantia de bom almoço, aliás, que saudade que eu tenho de comer aquela comidinha da mamãe, que na época eu tinha a audácia de reclamar! Talvez, certa vergonha, dessas de adolescente. Chegava e ia direto para o pátio, esperava o horário de entrada para as aulas teóricas, no intervalo, entre zoeiras e muitos sarros dos colegas, íamos colocar nossas marmitas nos aquecedores. No começo, ficávamos acanhados; depois, até a mistura era compartilhada nos almoços, quando não surrupiada no mesmo momento em que eram colocadas para aquecer. Não esqueço até hoje o aborrecimento de alguns: "Filhos da P...! Roubaram o meu bife!" Posso dizer que ter o bife roubado era melhor do que encontrar alguma mistura indesejada colocada pelos mesmos filhos da p... Uma vez, encontrei um pedaço de tijolo! Um colega meu não teve a mesma sorte: encontrou uma barata; pelo menos estava morta, o problema é que a colocaram no fundo e, só depois de comer quase tudo, encontrou a danada! Incentivei-o a dar o troco, apesar de não sabermos exatamente quem fizera, tínhamos lá nossa quase certeza. A vingança foi com excremento canino... É... A vingança é um prato que se come... Sujo! Com certeza, se havia um momento e lugar para se dar risadas, era na hora do almoço naquele refeitório!
      Na hora do intervalo, serviam uma espécie de "shake" oferecido pela escola. Tinha um sabor incrível, geralmente de banana, mas era tão bom que haviam alunos que levavam recipientes exageradamente grandes para forrar a barriga, alguns até passavam mal de tanto beber aquilo.
      Às tardes, íamos para as oficinas. Lembro-me com detalhes dos primeiros contatos com um torno mecânico, do cheiro daquele lugar: líquido refrigerante, cavaco queimado e óleo lubrificante. As morsas nas bancadas, bem alinhadas, quando ocupadas, o movimento das limas, dos arcos de serra indo e vindo em busca da perfeição inalcançável. E pensar que nosso presidente Lula estudou nesta escola e talvez tenha lembranças parecidas com as minhas.
      No pátio, haviam disputas entre as turmas de mecânicos e de eletrônica. Saía cada briga feia, éramos como verdadeiras gangues; eles nos chamavam de "graxa" e nós para não deixar barato, os chamavam de "manicures", haviam também os "pica-fios", neste caso eram os alunos de eletricidade que na maioria das vezes ficavam do nosso lado nas brigas, pelo menos na minha época. Lembro que chegava arrebentado em casa, brigávamos quase sempre por besteira, mas fazíamos elos fortes, primeiras amizades verdadeiras, aprendíamos a ter coragem, a se virar sem o irmão mais velho; claro que o mais importante era a escola quem nos dava: a profissão, com muita excelência! O ensino da Roberto Simonsen sempre fora impecável!
      Na hora da saída, sempre muita emoção: íamos em bando. Caso algum de nós fosse pego pelos manicures sozinho, ou vice e versa, já viu!
      Pulávamos o muro da estação de trem, para economizar o passe de ônibus. Tinha um pessoal que ia para o sentido Calmon Viana, eu ia com a galera que pegava a chamada linha tronco, sentido estação Estudantes. Lembro da voz feminina do alto falante: "composição estacionada na plataforma dois, com destino à estação Estudanteees...". Era a maior correria, tinha de pular duas plataformas, às vezes, me ralava todo. Tudo isso só pra chegar em Artur Alvim e poder comprar uma batatinha "chips"com o passe economizado.
      Certa vez perdi um colega, chamava-se Marcelo, morava em São Miguel, que Deus o tenha. Ele era gordinho e na hora de pular a plataforma, o trem o pegou... No enterro, muitos colegas disseram: "Malditas batatinhas!"  Dei até um tempo nessa de ficar pulando muro e plataformas de embarque, ficava recordando a imagem dele... Só não consegui dar um tempo nas batatinhas...
      Mas de todo este tempo no SENAI lá do Brás, muita coisa aprendi, principalmente saber se virar um pouco nas andanças desta metrópole, a conviver em grupo com diferenças, a respeitar os colegas e principalmente os meus limites, quando digo isto é com relação a tudo que experimentei naquela fase de minha vida.
      O nome e a fisionomia de quase todos os colegas e professores, ainda estão vivos em minha memória. Foi uma fase inesquecível que marcou o início de minha etapa adulta, nunca mais os vi. Apesar de ter seguido outros caminhos e outra profissão, pois hoje sou Enfermeiro, guardo com muito carinho minha primeira profissão, minhas primeiras andanças e encontros nesta cidade fantástica, locomotiva da nação e parte de meu coração: São Paulo!
      As batatinhas chips, pelo menos aqui em Artur Alvim, acabaram saindo de moda.